Cirurgião-geral, Ribeiro formou-se pela Faculdade de Medicina de Petrópolis (RJ), fez residência em Cirurgia Geral no Hospital Souza Aguiar (RJ) e pós-graduação no Hospital Monte Sinai, em Nova Iorque (EUA). Hoje é professor do curso de Medicina da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UFMS). Nesse ano, assumiu a presidência do Conselho Federal de Medicina. Em entrevista, falou sobre o Revalida, a criação de novas escolas médicas, o aumento do número de vagas de residência médica e a importância da Clínica Médica no Sistema de Saúde. Confira:

Recentemente o senhor esteve com o presidente Jair Bolsonaro e também participou de seção na Câmara dos Deputados com objetivo de garantir que o texto original da Medida Provisória 890, que institui o Programa Médicos pelo Brasil, seja mantido sem alterações. Qual o posicionamento do CFM em relação ao Revalida?

Ribeiro – A defesa do Revalida, como previsto pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, é uma bandeira do Conselho Federal de Medicina. Continuaremos atuando para que esse exame seja aplicado, com exigência de aprovação, para todos aqueles que se formaram em medicina em outros países e têm interesse em atuar no País. Além disso, entendemos ser fundamental que o Revalida continue a ser oferecido apenas pelas universidades públicas (federais, estaduais ou municipais). Hoje, lutamos no Congresso para derrubar as emendas que foram feitas à Medida Provisória 890/2019 que distorcem esses pressupostos. Temos conseguido o apoio de vários parlamentares e vemos a classe médica atenta e mobilizada. Essa é uma luta da medicina, dos médicos e de toda a sociedade brasileira.



O senhor, na ocasião da sua posse, reforçou a intenção do CFM de se empenhar na defesa do Sistema Único de Saúde. Quais são as principais ameaças ao SUS?

Ribeiro – O SUS é, do ponto de vista normativo, uma das grandes referências mundiais em termos de modelos assistenciais. Contudo, o nosso Sistema carece de melhorias em dois aspectos. O primeiro é gerencial. É necessário o aperfeiçoamento e a modernização da sua gestão para dar conta de sua imensa complexidade. Essa meta exige investimentos na qualificação das equipes, atualização de regras, transparência nos dados e maior controle operacional. O segundo aspecto é a crise de recursos que afeta a rede pública, que vem sendo historicamente subfinanciada. O governo federal, ao longo dos últimos anos, tem adotado uma política de reduzir, cada vez mais, investimentos em saúde e transferir essa responsabilidade para estados e municípios.

Para expor a situação caótica, em conversa pessoal, um prefeito me afirmou que um município com menos de 200 mil habitantes não tem a menor possibilidade de obter qualquer tipo de receita de investimento. Ai, esse município fica totalmente refém de projetos levados ao Ministério da Saúde ou ao governo estadual. O governo federal, que já chegou a financiar 60% dos gastos públicos em saúde, hoje participa com apenas 45%, deixando o restante por conta de estados e municípios. Fizemos um levantamento sobre as contas da Saúde, pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), junto com a ONG Contas Abertas, e descobrimos um verdadeiro escândalo. Do dinheiro orçado para a saúde, que já é subfinanciado e muito aquém do necessário, aproximadamente R$ 10 bilhões, todos os anos, não são executados. Trata-se de dinheiro aprovado no orçamento da União. Então, entre 2003 e 2017, cerca de R$ 174 bilhões não foram executados – segundo dados do SIAFI (Sistema Integrado de Administração Financeira) e, portanto, do próprio governo federal. Desses recursos, por volta de R$ 74 bilhões não eram de custeio, mas de investimento. Com isso, a população brasileira paga um preço altíssimo, porque, em um sistema que já é subfinanciado, nem aquilo que está orçado tem sido executado.

Como o CFM se posiciona em relação à qualidade do ensino médico no Brasil, considerando o grande número de escolas médicas abertas nos últimos anos?

Ribeiro – Hoje nós já temos 337 escolas. Não existe precedente no mundo de que num espaço de menos de 10 anos tenham sido abertas mais de 140 escolas médicas. Estamos no limite para que essa aberração volte a assombrar a medicina brasileira e a população brasileira. Esse é um problema que nós e a entidade médicas temos de resolver juntos. Nesse sentido, o CFM tem buscado apoio à manutenção da moratória que suspendeu a criação de escolas médicas por cinco anos junto a diferentes setores.

Temos conversado com parlamentares e ministros, apresentando argumentos fortes. Inclusive, o presidente Jair Bolsonaro está ciente de nossas preocupações, tendo sinalizado a realização de uma reunião com representantes dos Ministérios da Saúde e da Educação para discutir o assunto. Essa moratória resultou de uma longa negociação com o então presidente Michel Temer, que apoiou a medida por sugestão de Mendonça Filho, seu ministro da Educação. Atualmente, percebe-se a inquietação de alguns setores da Esplanada, que trabalham para mudar a regra e permitir o retorno de um verdadeiro balcão de negócios em relação à abertura de escolas médicas no Brasil.

De modo complementar, queremos trabalhar pela qualificação do ensino nas escolas que já estão abertas. Com essa meta, o CFM implementou o Sistema de Acreditação de Escolas Médicas (Saeme), uma iniciativa que já validou mais de 30 instituições de ensino, com base em critérios de excelência. Nesse lado do mundo, o Saeme é o único processo reconhecido pela World Federation for Medical Education somos nós. E isso é extremamente importante, pois a partir de 2023 médicos que decidirem emigrar para os EUA, obrigatoriamente terão de ser graduados no país de origem por uma escola acreditada e com registro na WFME. E só nós temos isso aqui. É um legado que nós deixamos.

O senhor avalia que há benefícios no aumento do número de vagas dos programas de residência médica pelo país?

Ribeiro – É pertinente a expansão do número de vagas de residência médica no País, desde que a partir de critérios rígidos de qualidade para que os inscritos nesses programas contem com infraestrutura física e operacional, bem como com o suporte de professores e preceptores que possam, efetivamente, contribuir para sua formação como especialistas. Na época do Mais Médicos, o que a presidente Dilma Rousseff e seu ministro Alexandre Padilha fizeram foi uma expansão absurda no número de vagas, em lugares sem a menor condição de um processo de ensino e aprendizagem. Só hoje temos 35% de vagas ociosas, em termos gerais, nesses programas de residência médica. No caso da Medicina de Família e Comunidade, há 74% de vagas ociosas. Em terapia intensiva, que agora passamos para o acesso direto, a ociosidade é de 50%.

É preciso ter em tela que não existe infraestrutura hospitalar, no Brasil, que permita um aumento no número de vagas na residência médica para acompanhar esse aumento exponencial de vagas de graduandos. Quando fazemos as contas, desse total de 1,5 milhão de médicos, vamos ter praticamente 60% sem residência médica. Esses médicos vão estar estudando para entrar ano que vem na residência? Não. Eles vão entrar no mercado de trabalho, principalmente na atenção básica e, pasmem, na urgência e emergência. Esse é o tamanho do problema que temos de resolver.

Em 2018, o CFM divulgou dados recentes da Demografia Médica e a Clínica Médica é a especialidade com mais médicos titulados, 11,2% do total, seguida da Pediatria, Cirurgia Geral, e Ginecologia e Obstetrícia. Em sua opinião, qual a importância do Clínico no sistema de saúde?

Ribeiro – No Brasil, há atualmente cerca de 35 mil clínicos médicos. Esses especialistas possuem formação numa área que considero como um dos pilares da medicina contemporânea, uma vez que incorpora conteúdo de diversas outras. Nesse sentido, assumem, diariamente, no atendimento o desafio do diagnóstico e da prescrição, em ambientes nem sempre favoráveis, como os que existem na rede pública ou mesmo em unidades de planos de saúde com cobertura limitada e ampla demanda. Por isso, cabe ao clínico receber uma formação à altura de sua missão, de fazer a avaliação dos pacientes, a partir de sinais e sintomas, encaminhando-os ao devido tratamento, na grande maioria das vezes com resolubilidade.

Interessante notar que para muitos a clínica médica se restringe à atenção básica ou à baixa complexidade. Isso é um equívoco, pois a vivência nos hospitais e prontos-socorros confirmam que esses profissionais têm presença cada vez mais necessária nos serviços de urgência e emergência, assim como nas unidades de terapia intensiva.

O senhor acredita ser importante valorizar a clínica médica?

Ribeiro – Certamente que sim. O fortalecimento dessa especialidade, sobretudo em termos de capacitação, será de grande relevância para o sistema de saúde brasileiro, seja na esfera pública, seja na esfera privada. Inclusive, é importante ficar atento a um detalhe: o total de clínicos no Brasil não é fidedigno com relação ao número de profissionais que atuam como clínicos gerais. Isso ocorre porque a maioria dos que fazem residência nessa especialidade utilizam essa formação como pré-requisito para acessar outras especialidades. Esse cenário nos leva a perceber a necessidade de que a clínica médica, assim como a cirurgia geral, seja resgatada em sua plenitude, pois há um grande número de especialistas nessa área que, com o passar do tempo, deixam de ser exercê-la para se dedicar à segunda especialidade escolhida, como reumatologia, endocrinologia, pneumologia, enfim qualquer outra especialidade clínica sem acesso direto.

A Demografia Médica aponta também que há mais médicos atuantes no Sul e Sudeste do País, sendo que em algumas cidades, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste, há menos de um médico para cada mil moradores. Qual a posição do CFM em relação à carência de médicos em algumas localidades do Brasil?

Ribeiro – Historicamente, a medicina brasileira convive com dois fenômenos. Existe a concentração de profissionais nas regiões Sul e Sudeste, assim como nos municípios da faixa litorânea ou com maior grau de desenvolvimento econômico. Além disso, percebe-se que o Sistema Único de Saúde não tem se consolidado com um campo atraente para os médicos, que, mesmo quando entram nessa rede, costumam não ficar por conta de aspectos, como a baixa remuneração, a falta de condições de trabalho ou a demanda crescente. Desse modo, os médicos também se concentram na rede particular ou formada pelos planos de saúde.

Para romper com esses dois ciclos, o País precisa de uma ação efetiva do Estado, que deve criar políticas públicas indutoras para a fixação dos médicos nas áreas mais distantes e dentro do SUS. Recentemente, assistimos um movimento importante nesse sentido, com a implementação do programa Médicos Pelo Brasil. Essa iniciativa concretiza uma luta de 30 anos dos médicos e das entidades médicas em prol da criação de uma carreira federal dos médicos na atenção básica. Assim, essa iniciativa veio resgatar o que realmente importa, ou seja, levar saúde aos necessitados, aos hipossuficientes, através da carreira federal para médicos.

O Programa Médicos Pelo Brasil, que substituirá gradativamente o Mais Médicos, amplia tanto a oferta de serviços em locais de difícil provimento ou de alta vulnerabilidade quanto a formação de especialistas em medicina de família e comunidade. Segundo o Ministério da Saúde, em relação ao Mais Médicos, a estratégia aumentará em cerca de 7 mil vagas a oferta de médicos em municípios onde há os maiores vazios assistenciais, sendo que as regiões Norte e Nordeste juntas têm 55% dessas vagas. Ao todo, serão 18 mil vagas previstas, ficando cerca de 13 mil em municípios de difícil provimento. Um ponto que merece destaque é que essas vagas contam com condições que diferem muito da precarização de pagamentos feitos por meio de bolsas. No Médicos Pelo Brasil, os participantes contarão com Contrato via CLT, progressão salarial, gratificação por desempenho e bônus para locais remotos e DSEIs. Além disso, serão incorporados após aprovação em testes de conhecimentos (eliminatórios e classificatórios).

Durante sua gestão, como deverá ser o relacionamento do CFM com as sociedades de especialidade médica?

Ribeiro – Atravessamos um momento ímpar na história da medicina brasileira. A crise pela qual passamos é tão grave, com repercussões em tantos aspectos do exercício profissional e na formação de futuros médicos, que, neste momento, precisamos nos despir de nossas vaidades, nos sentarmos e fazermos, juntos, realmente algo que faça a diferença. Nesse sentido, a gestão que tem início no CFM buscará, sobretudo, construir pontes e canais de diálogo. É nossa intenção atuar em sintonia com a Associação Médica Brasileira (AMB), a Federação Nacional dos Médicos (Fenam) e a Federação dos Médicos do Brasil (FMB), assim como com todas as sociedades de especialidades. Todos são grandes parceiras dos conselhos de medicina, com importantes contribuições para o movimento médico nacional. Sabemos que, algumas vezes, esse relacionamento tem sido prejudicado por razões políticas, mas isso não pode ser visto como obstáculo.

É hora de focarmos naquilo que nos une, nos mantém alinhados, ou seja, por um lado, a valorização da medicina e do médico, e de outro lado, a criação de uma rede de assistência de qualidade, que traga segurança e eficiência aos milhões de atendimentos realizados todos os dias em postos de saúde, consultórios, prontos-socorros e hospitais. Além desse movimento estratégico, baseado em pautas comuns, o CFM dará continuidade ao cumprimento de sua missão legal, com o fortalecimento de seu trabalho no campo da fiscalização e na defesa da profissão, com interações efetivas em campos como ensino médico, articulação política e proteção ao ato médico, conforme previsto na Lei nº 12.842/2013. E é necessário destacar um ponto: em nenhum desses aspectos começaremos do zero. Isso porque muito foi feito nas gestões que nos antecederam. Essas realizações serão o ponto de partida para irmos além, aperfeiçoando fluxos, processos e normas, levando o CFM e a classe médica avançar.